sábado, 10 de outubro de 2009

Bastardos Inglórios

ATENÇÃO: O TEXTO ABAIXO ENTRA EM DETALHES DA TRAMA DO FILME
O filme é de uma imoralidade sem limites. Em uma cena, um soldado alemão é interrogado por seus captores americanos sobre o local das tropas nazistas. Ele se nega a responder e, em uma sequência sem cortes, é morto violentamente a golpes de bastão de beisebol. Seus companheiros não são apenas mortos, mas tem seus escalpos cortados à maneira apache, e a suástica nazista desenhada, à ponta de faca, na testa. Este é "Bastardos Inglórios", o mais novo filme de Quentin Tarantino, que é daqueles diretores que devem ser forçosamente citados para que o espectador possa ter um parâmetro sobre o que está assistindo. Ver um "filme de Tarantino" significa, grosso modo, não ver um filme passado no mundo real. O mundo de Tarantino é passado dentro de um fotograma de celulóide de 35mm, seus personagens sabem que são personagens e a História (com H maiúsculo), deve ser vista sob o recorte não do Historiador, mas do Crítico de Cinema. Mas será que isso o exime da responsabilidade pelo que coloca na tela? Seria esta imoralidade própria do filme ou de Tarantino?

Examinando seus filmes anteriores, particularmente Pulp Fiction e Kill Bill, havia certa moral em seus personagens, mesmo que uma "moral cinematográfica". O boxeador interpretado por Bruce Willis chega, por um momento, a lamentar ter matado seu oponente na luta em que ele foi pago para perder. Jules, interpretado por Samuel L. Jackson, é o personagem que passa pela maior mudança da trama. Ele é um frio matador de aluguel que tem uma "iluminação" que o faz deixar a vida de crimes. Já seu colega Vincent (John Travolta) continua igual e morre de forma estúpida, ao deixar a arma na pia da cozinha enquanto vai ao banheiro. Mesmo em Kill Bill, o protótipo do filme de vingança, há o que se poderia chamar de "honra entre ladrões". Bill (David Carradine) mata os presentes a um casamento porque a Noiva (Uma Thurman) o havia abandonado. Mas ela sobrevive e mesmo em coma no hospital tem a vida poupada, no último momento, porque Bill acredita que ela merece algo melhor. Um dos capangas da gangue de Bill, interpretado por Michael Madsen, chega a dizer que a Noiva tem razão e que eles merecem morrer pelo que fizeram.

Os "bastardos inglórios" do novo filme não têm nada disso e, curiosamente, são o ponto fraco da produção. Liderados por Brad Pitt e claramente baseados nos "Doze Condenados", são todos tão inexpressivos que o espectador chega a confundir um com o outro. A exceção é também "tarantinesca", um alemão que entrou no exército apenas para matar (em outra série de cenas violentamente gráficas) companheiros nazistas. O que salva "Bastardos Inglórios" de ser um desastre, além do claro talento de Tarantino em escrever diálogos e dirigir algumas cenas de tirar o fôlego, é seu amor ao cinema. "Bastardos Inglórios" está cheio de referências cinematográficas, a começar pela vinheta antiga da Universal Pictures. O primeiro capítulo (outra das marcas do diretor) é uma clara homenagem ao diretor italiano Sergio Leone, e uma das melhores sequências da produção. É também a que apresenta o vilão do filme, o "caçador de judeus" Hans Landa, muito bem interpretado por Christoph Waltz. Landa é daquele tipo de vilão "charmoso", que me lembrou um pouco o Bellocq de "Caçadores da Arca Perdida". Bem falante, culto, refinado, Landa é um verdadeiro cavalheiro até o momento em que começa a matar.

Do massacre promovido por Landa neste primeiro capítulo foge a jovem judia Shosanna (Mélanie Laurent), que é a personagem mais humana do filme. Ela foge para Paris e se transforma na dona de um cinema que vai se tornar o palco do clímax da história. Assediada por um herói nazista chamado Zoller (Daniel Brühl), ela é obrigada a usar seu cinema para a estréia do novo filme de Joseph Goebbels (Sylvester Groth), Ministro da Propaganda de Adolph Hitler. Shosanna então planeja se aproveitar da ocasião para vingar a morte da família, visto que o cinema estaria cheio de altos oficiais da hierarquia nazista. Tarantino, em uma metalinguagem bem interessante, transforma a própria película cinematográfica (na época altamente inflamável) na arma de vingança de Shosanna. Só que Tarantino apresenta este plano de forma falha, e diria até preguiçosa. Ele usa cenas de um pseudodocumentário para mostrar as propriedades incendiárias da película, algo totalmente desnecessário. Desnecessária também a sequência em que ele mostra como Shosanna faria para conseguir revelar um rolo de filme 35mm, com som, que ela planeja mostrar para os nazistas. Em um filme tão absurdo, qual a necessidade de explicar este detalhe? A resposta está no fato de que Tarantino é um "nerd" cinematográfico.

A estréia do filme de Goebbels também chama a atenção dos Aliados, que enviam os "bastardos", auxiliados por uma atriz alemã (a bela Diane Kruger), para o local. Há uma sequência ótima, passada dentro de uma taverna, que é um primor de roteiro e direção. Notem como Tarantino constrói a sequência tijolo por tijolo, mostrando como tudo vai dar espetacularmente errado.

E chegamos então ao final, em que Tarantino quebra todas as regras possíveis e mergulha fundo em uma realidade alternativa que literalmente reescreve a História. E aqui retornamos à questão do início deste texto. O que Tarantino está querendo dizer? A II Guerra Mundial, que começou há exatos 70 anos, foi um dos eventos mais sangrentos dos últimos séculos e definiu a ordem mundial em que ainda vivemos. Berlim foi liberada pelo exército russo e depois pilhada e dividida entre os americanos e soviéticos. Os ingleses tiveram o país praticamente destruído e perderam milhares de civis e soldados. Hitler se matou longe dos olhos da Humanidade. No filme de Tarantino, tudo muda. Os britânicos quase estragam tudo durante a sequência na taverna. São os heróis americanos, judeus, se servido de um acordo "imoral" com o nazista Landa, que terminam a guerra dando ao mundo do cinema uma das cenas mais delirantes de vingança já mostradas nas telas. O próprio Adolph Hitler é visto sendo varado por milhares de tiros de metralhadora. Ao final, Brad Pitt, e Tarantino, dizem: "Acho que esta foi minha obra prima".

Assim, "Bastardos Inglórios" é um filme que incomoda. O que é ótimo, toda obra que pretende dizer alguma coisa é incômoda. Mas mesmo cinematograficamente falando é falha. Há momentos estupendos isoladamente, mas que não formam um filme bem amarrado como foi Pulp Fiction, por exemplo. Moralmente, o filme é muito discutível. A não ser que Tarantino esteja, no fundo, fazendo uma crítica ao "modo americano" de ser e de agir. Mas quem se importa? O importante é matar da forma mais violenta possível.


3 comentários:

Unidade de Carbono no Palido ponto Azul disse...

Gostei do filme, mas tenho alguma resalvas: O papel de Mike Myers é bem chatinho. E não gostei da hora da cena final do cinema, que o Tarantino ficanda colocando as referencias do alto-escalão nazista, para falar quem era quem. No mais, mais uma diversão banhada de sangue dele. Uma sequencia bonita, é quando a Shosanna, está planejando a matança, e se veste belissimamente ao som de David Bowie. Presença novamente da atriz Julie Dreyfus, aqui como amante de Goebbels. A atriz é filha de Francis Dreyfus, dono da gravadora que lançou J.M.Jarre.

Fernando Vasconcelos disse...

Imoral e humanista! Só Tarantino pode :) eh eh eh

abs
Fernando
www.kinemail.com.br

João Solimeo disse...

Beleza? haha...cara, vou ter que ver o filme de novo (coisa que eu pretendia de qualquer maneira).

Será que eu acordei "moralista" ou só eu me incomodei tanto com a "mensagem" do filme? E, antes que você me fale "mas que mensagem? a mensagem do Tarantino é CINEMA!", eu já digo no seu lugar, hehe. Já escutei e li isso em vários outros sites. Mas eu acho que o pessoal está confundindo as coisas. Primeiro, o fato de ser "só cinema" não tira a reponsabilidade de ninguém pelo que ele vai colocar na tela, pelo contrário. E acho que há uma GRANDE diferença entre os outros filmes de Tarantino e este "Bastardos Inglórios". Todos os personagens anteriores dele já eram "imorais" para começar. Eram assassinos de aluguel, capangas, bandidos, enfim. Já era um mundo "imoral" para começar. E mesmo assim, como disse no meu texto no Câmera Escura, mesmo essas pessoas tinham uma "ética", uma "honra entre ladrões", que seja. O próprio Bill de "Kill Bill" deixa a Noiva viver no último instante, impedindo Daryl Hanna de matá-la, porque ela estava indefesa e merecia coisa melhor.

Já em "Bastardos Inglórios" ele começa o filme de forma séria, tratando de um assunto seríssimo e mostrando a crueldade do (fantástico) Coronel Hans Landa em sua caça aos judeus. Ok. Ai ele mostra os "heróis" do filme. Que tipo de herói é esse? É um AMERICANO. Um cara que declara que sua missão na vida é matar nazistas, e da forma mais cruel possível, para espalhar o terror entre eles. E, de fato, eles não brincam em serviço. A morte do alemão a golpes de bastão de beisebol é bárbara, sem falar nos escalpos e nas suásticas desenhadas. Que tipo de herói é este? Minha pergunta é: será que a resposta é "não importa" (e ai eu acho que Tarantino está sendo irresponsável, por mais moralista que isso possa soar), ou Tarantino está querendo dizer alguma coisa? Os americanos mostrados por ele torturam cruelmente, matam, fazem acordos duvidosos (e não os cumprem). Eu gostaria de acreditar que Tarantino está querendo mostrar o lado desumano dos americanos, principalmente pós guerra do Iraque e prisão de Guantánamo. Mas será que é isso mesmo? Ou, como muita gente está dizendo, no fundo o filme é uma "celebração ao cinema", nada disso importa, e ele só quer "deleitar" a platéia com boas porradas e mortes violentas?

Complicado. Sim, Pulp Fiction tinha cenas de revirar e estômago, e havia muita violência "gratuita" em Kill Bill. Mas, repito, nestes casos tratam-se de personagens caricatos, baseados em literatura pulp ou animês japoneses. E, mesmo assim, havia muita identidade e até "honra" nestes personagens. Já os "Bastardos Inglórios" não são muito diferentes de "Zed" e seu colega sadomasoquista, na famosa cena de sodomia de Pulp Fiction. Mas que diferença entre o (monstro) interpretado por Brad Pitt e Jules. Há sequências maravilhosas em Bastardos Inglórios, minhas preferidas são o primeiro capítulo e a cena da taverna (não coindidentemente, as cenas mais sérias, e levadas a sério, do filme).

Enfim, muita coisa pra discutir. Mas to achando estranha essa reação meio juvenil, em minha opinião, do povo que só diz "yeah!!! burn nazi motherfuckers!!!".