domingo, 1 de junho de 2008

Trilogia das Cores

O diretor polonês Krzysztof Kieslowski (que morreu em 1996, aos 55 anos, de ataque cardíaco) era especialista em filmes em série. Católico, realizou "O Decálogo", um conjunto de filmes baseados nos Dez Mandamentos. Com as comemorações dos duzentos anos da Revolução Francesa, em 1989, Kieslowski conseguiu financiamento francês para realizar mais uma série, desta vez baseada nos ideais da revolução e nas cores da bandeira francesa: liberdade, igualdade, fraternidade. Azul, branco e vermelho.


A Liberdade é Azul (Trois Couleurs: Bleu, 1993) conta a história de Julie (a jovem, bela e talentosa Juliette Binoche), uma mulher que perde o marido e a filha em um acidente de carro. O marido era um compositor famoso que estava compondo um concerto em homenagem à unificação da Europa. Julie se fecha atrás de um rosto fechado e incapaz de sentir qualquer emoção. Quando ela volta à sua casa encontra uma empregada chorando. Ela lhe pergunta: "Por que você está chorando?", e a empregada responde: "Porque a senhora não chora". Julie decide tentar mudar de vida e se muda do campo para a cidade grande, decidida a apagar o passado e nunca mais se ligar a mais ninguém. Mesmo assim, há uma cena em que ela pega o telefone e liga para um amigo, perguntando simplesmente: "Você ainda me ama? Então venha". Eles fazem amor mas ela parece não ter sentido nada. Kieslowski, auxiliado por seu ótimo compositor Zbigniew Preisner, usa a música como forma de indicar que as emoções não abandonaram totalmente Julie. Em alguns momentos, por exemplo, a tela fica simplesmente escura e escutamos alguns acordes da orquestra tocando parte da trilha (do suposto concerto perdido). É como se Julie carregasse a música, e todas as suas tristes memórias, presas dentro de si. Há também a desconfiança de que, na verdade, era ela quem compunha as músicas para seu marido. A bela fotografia e a direção de arte tratam de fazer com que todo o filme seja azulado. Binoche está maravilhosamente contida, e consegue transmitir emoção apenas com o olhar. O tema da música é levado por todo o filme. Em frente ao café que frequenta, por exemplo, Julie vê um músico de rua que, com a flauta, curiosamente toca as mesmas notas do concerto que ela escuta repetidamente na cabeça. Kieslowski gosta de colocar esses "acasos" em seus filmes, e há situações similares ou encontros casuais mesmo entre os personagens da trilogia. As emoções (ou a música) acabam vencendo no final, em uma sequência de arrepiar, mostrando os personagens do filme enquanto o concerto é escutado na trilha sem interrupções pela primeira vez. Juliette Binoche é mostrada fazendo amor como que através de um vidro, em um curioso efeito visual, como se ela estivesse finalmente exposta ao mundo e a seus sentimentos.

A Igualdade é Branca ( Trois Couleurs: Blanc, 1994) tem um tom bem mais leve e cômico que o filme anterior. O roteiro trata de um casal em crise. O polonês Karol Karol (Zibgniew Zamachowski) está sendo abandonado pela esposa Dominique (Julie Delpy). Em um tribunal, ela explica ao juiz que o motivo do divórcio é que o casamento não foi consumado. Envergonhado, Karol admite que não conseguiu fazer amor com a esposa desde o casamento, seis meses antes, mas que ele quer tentar salvar o relacionamento. Dominique não só não quer mais continuar casada como, aparentemente, quer acabar com a vida do ex-marido. Ela ateia fogo no salão de beleza deles e diz para a polícia que o culpado foi Karol. Ele tenta voltar para a Polônia mas está sem passaporte e sem dinheiro. Uma das cenas mais engraçadas do filme é o modo pelo qual Karol volta à Polônia: dentro de uma mala de viagem, embarcada por Milokaj (Janusz Gajus) um colega polonês que ele conheceu na estação de metrô de Paris. A idéia da "igualdade", ou melhor, da desigualdade, fica aparente na diferença de tratamento que imigrantes como Karol tem. De volta à Polônia, além de trabalhar como cabeleireiro no salão do irmão, Karol começa a trabalhar como segurança para um empresário e, com muita sorte e esperteza, começa a ganhar dinheiro e, aos poucos, elabora um plano para se vingar da ex-esposa. "A igualdade é branca" é o filme mais leve da trilogia, mas não deixa de ter seu charme.


A Fraternidade é Vermelha (Trois Couleurs: Rouge, 1994) lembra um pouco mais o primeiro filme. Até porque a personagem principal, Valentine, é interpretada por uma Iréne Jacob que me lembrou muito Juliette Binoche, de "Azul". Só que Valentine (que é uma modelo) é bem mais otimista e menos sofrida que Julie, apesar de ter sua cota de problemas, como um irmão viciado em drogas. Uma noite ela acidentalmente atropela uma cadela chamada Rita, que tem o nome e o endereço escritos na coleira. Valentine vai até o endereço e encontra um senhor amargo e indiferente com o destino de sua cadela. Ela leva Rita ao veterinário e cuida dela, mas fica curiosa com o velho, e volta à casa dele. Lá ela descobre que ele é um juiz aposentado (Jean-Louis Trintignant) que perdeu a esperança na Justiça e nos seres humanos. Como passatempo ele fica escutando as conversas telefônicas dos vizinhos através de um aparelho, o que inicialmente choca Valentine. Mas percebemos que, ao mesmo tempo que ela quer ir embora, parte dela é atraída seja pela conversa dos vizinhos ou pela figura triste do velho. Uma curiosa ligação acontece entre os dois. O filme tem uma série de tramas paralelas curiosas e interligadas. Há um vizinho de Valentine, por exemplo, que acabou de se tornar um juiz e que tem uma vida muito parecida, sabemos depois, com a juventuda da velho juiz. Valentine tem um namorado morando na Inglaterra que liga para ela todas as noites para checar se ela está em casa e, ciumento, fica fazendo perguntas sobre o dia dela. O tema da traição (e da Justiça) está presente nos três filmes da trilogia. No primeiro, a personagem de Juliette Binoche descobre que o marido recém falecido tinha uma amante que é advogada no mesmo tribunal em que o divórcio de Karol e Dominique é julgado no segundo filme. No terceiro, tanto o velho juiz quanto o rapaz foram traídos por suas companheiras e perdem a fé na Justiça. Irene Jacob, bela e inocente, ainda acredita nos seres humanos e, aos poucos, vai trazendo o juiz de volta à "vida". Há cenas de pura beleza como a sessão de fotos de Valentine, com o fundo vermelho sangue, ou seu desfile na parte final do filme. Apesar dos problemas com o namorado, Valentine resolve partir para a Inglaterra encontrá-lo, e ao final um acontecimento trágico junta todos os personagens da trilogia no mesmo lugar.

Kieslowski dirige com elegância e tem preferência por certos planos, como belos closes em perfil de suas atrizes, ou detalhes mecânicos como a roda do carro do primeiro filme, a esteira que transporta a mala no segundo, ou a sequência de abertura do terceiro, que acompanha os cabos telefônicos de um aparelho ao outro. Há uma série de dicas visuais ligando um filme ao outro, como as cores de certas roupas ou objetos de cena. Ou então certas piadas como uma senhora que aparece nos três filmes na mesma situação, tentando depositar uma garrafa de vidro em uma lixeira alta demais para ela. Só Irene Jacob, em "Fraternidade", ajuda a senhora a jogar a garrafa. Kieslowski declarou, terminada a trilogia, que estava se aposentando e que jamais faria outro filme. Os DVDs contém uma entrevista dada a Rubens Ewald Filho em que ele diz que cinema é apenas sua profissão, e que ele pode parar quando quiser. Soa um pouco duro escutar isso de alguém tão competente na fabricação de suas imagens. Se ele falava sério ou não, o caso é que o cinema perdeu Kieslowski, morto por um ataque cardíaco, dois anos após filmada sua bela e sensível trilogia.

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